domingo, 23 de agosto de 2015

Chegada

Maura foi heroína de nossa gente. Limpa, partiu sem conhecer a preguiça. Nasceu, branca nevada, filha do dia. Era filha de negro e de negra. Primeiro, o pai desconfiou traição. Ele, na certeza, bateu na mãe muitas vezes. Batia outras vezes pela dúvida. O barulho das chaves era um aviso. Silêncio. A mãe aguardava infeliz o seu retorno. Maura enxergava as sombras se atracando, a dança insana de mãos e pernas. Era a covarde encenação cotidiana: o pai, com o punho em riste, açoitava sua cativa. Uma vez, no Natal, a mãe cuspiu sangue. O pai fechava a porta com violência, sumindo por vários dias. A mãe se recompunha ao final, bamboleando até a cozinha, cantando canções de louvor. João 12:23 se cumpriria, ela tinha esperança. Ele há de vir. O Menino Jesus, deitado à mesa, foi testemunha do triste rito. Natais eram alegres. Era tempo de Maura ganhar boneca de outros usos. Foi criança que brincava na vida, no tempo entre os ofícios. Tinha vocação de limpeza desde a tenra idade. Trabalhava.
Maura veio de repente. Rompeu seu casulo maternal num setembro distante, Deus sabe onde. Chegou pobre, minguada, esquisita, de cara doente. Tinha os olhos errosos. Não era traição, era um castigo. Maura era doente, chorante, pobre de nem se ter dó. Estudava com dificuldade já que tinha os olhos errosos. Maura era a alegria da sala. Quando a menina entrava, o lugar se enchia de gargalhadas infantis. Podia uma menina ser tão feliz? Era satisfeita, ouvia bem baixinho. Não havia bem algum para ouvir, ela não havia de reclamar. A menina, quase surda, quase cega, calada. Ao fundo, grita-se leite azedo, albina, cotonete. Crianças são puras. Maura rabiscava seus cadernos, escrevendo letras confusas, pensando ansiosa no próximo Natal. 
O cômodo em que ela sobrevivia era bem menor do que a casa onde crescera. As paredes brancas manchadas. Faxinava o dia todo, sonhava no tempo entre os ofícios. A mãe tinha morrido há dois anos. Maura, a albina, não dava lugar à preguiça. Carecia de ter coragem. Trabalhou. Maura, a nunca esperada. Não teve namorados. Atravessou errada a rua na véspera de Natal. Não precisou esperar. Ônibus são como palavras sem freio. Motoristas entorpecidos de injetáveis não tem misericórdia em seus pés furiosos.
Ela estava ainda mais alva. Maura no caixão no meio do velório. Uns poucos assistiram à sua descida ao sepulcro. Todos se esqueceram de que ela não mais voltaria. E de que o corpo dela, mais tarde, seria devorado e absorvido pela terra. 
Maura tinha partido e somente Deus aguardava a sua chegada.