sábado, 21 de março de 2015

Entre viver e morrer

O silêncio é uma quebra
Da vida que emana som.
É o estado que celebra
O desacerto do tom.

Num discurso que eu faço
Ou quando toco acordeon
Se há, pois, o descompasso
Degenera-se o frisson.

Da existência um pedaço
As vozes vêm preencher:
Se situam no espaço
Entre viver e morrer.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Carta a um(a) amigo(a) que se diz cristã(o)

Caro(a) amigo(a) que se diz cristã(o),

Se o cristianismo pra você se resume a frases feitas, prosperidade e meditações espiritualistas ou não tem (ou perdeu) a relevância nos seus conflitos e questões cotidianas, e por isso você precisa encontrar respostas em outras cosmovisões, tais como feminismo e marxismo, uma coisa é verdade: você já deixou de ser cristão. Um legítimo marxismo cristão (ou cristianismo marxista) ou feminismo cristão (ou cristianismo feminista) é tão plausível quanto um ateísmo cristão (ou um cristianismo ateísta). Brincadeiras com os ismos à parte, seu "cristianismo" é raso, frágil... Você se diz cristão mas sua fé não toca a realidade!
A dicotomia entre a sua suposta liberdade (moral, religiosa, afetiva) e as prisões da sua natureza determinista te desnorteia, e não há utópica dialética que misture essa água e esse óleo. Aí vem você e dá um salto existencial no culto de domingo no qual você percebe um pouco de sentido à sua vida. "O coração humano é uma fábrica de ídolos. Cada um de nós é, desde o ventre materno, experto em criar ídolos", já dizia Calvino e você, desta forma, criou o seu! Você o moldou conforme suas inclinações, medos e anseios e agora presta a ele obediência. O ídolo é seu guia e você não depende mais do Deus invisível. Seja seu ídolo os seus desejos, as pessoas que você ama, o capital, sua filosofia, as forças sociais, a teologia, a luta de classes, ou qualquer outro que seja, ele é sempre uma negação da revelação de Cristo.
Faço, então, dois pedidos para você.
Somos seres essencialmente religiosos, não há como negar. Se você entende a impossibilidade de consonância entre seu ídolo e sua fé, é um bom sinal. Ore a Deus pedindo sua direção e abrace o sola scriptura (somente a escritura) como único princípio norteador da sua cosmovisão; única regra de fé e prática.
Se você ainda assim se recusa a entender que o cristianismo não é e jamais será dialético, e que é impossível misturar suas convicções ideológicas sectaristas com a sua fé cristã, é melhor que você siga sua vida sem se dizer cristão. Seja honesto(a) consigo mesmo(a) e não continue envergonhando o evangelho da cruz. Assuma as suas convicções secularistas, tente viver segundo sua própria cosmovisão. Talvez -  e só talvez - seja menos doloroso, ainda que seja, certamente, um prejuízo inimaginável.

No desejo que você se encontre, uma hora ou outra, em meu primeiro pedido.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Sabiás românticos, por Cecília Meireles



Se eu disser que o mês de agosto chega no bico dos sabiás - quem me vai entender? Quem me vai entender, se eu disser que entre as névoas da manhã, sabiás invisíveis - nas mangueiras? nos ipês? - anunciam o céu azul e o dia mesmo? Ninguém sabe mais o nome das aves. As aves desapareceram com as muralhas de cimento armado, com os fios que cruzam os ares, com a fumaça e os ruídos da cidade hostil.
Os velhos cronistas que viram uma terra diferente, puderam anotar com minuciosas palavras: "... criam-se em árvores baixas, em ninhos, outros pássaros, a que o gentio chama sabiá-oca, que são todos aleonados, muito formosos, os quais cantam muito bem ... " O ouvido do segundo cronista era mais apurado - e ele escrevia: "Outro pássaro se acha, chamado sabiá, da feição do melro de Espanha - e antes cuido que é o próprio, porque canta como eles, sem lhe faltar mais que um dobrete..: " Um terceiro cronista opinava:"... sabiás que chamam "das praias", por andarem sempre nas ribanceiras (onde só cantam), mais que todos suaves."
Não me lembro de ter ouvido esses cantos "mais que todos suaves" entre os versos do século XVIII. Nesse tempo, andavam os poetas ainda muito lembrados dos rouxinóis europeus, e a paisagem brasileira facilmente se confundia com os bosques da Arcádia.
Foi preciso que viessem os românticos, já num Brasil independente, para que, na culta Coimbra, uma voz recordasse os bosques e as várzeas da pátria distante e escrevesse a "Canção do Exílio":

"Minha terra tem palmeiras
onde canta o sabiá..."
 Os jovens poetas que se seguiram, todos se lembraram do pássaro de voz suave:
"É um país majestoso
Essa terra de Tupá,
Desd' o Amazonas ao Prata
Do Rio Grande ao Pará!
- Tem serranias gigantes
E tem bosques verdejantes
Que repetem incessantes
Os cantos do sabiá!"
O sabiá sugeria vozes de anjos mortos, de almas errantes, de gênios da tarde. ("São os sabiás que cantam /nas mangueiras do pomar...")
Chamavam-no "formoso", "sonoro", "poeta da solidão"... Chamaram-no mesmo "alado Anacreonte"...
Isso foi num tempo de mansões, varandas, laranjeiras, mangueiras, quando os poetas conversavam com donzelas líricas e muito frágeis, que lhes diziam: "Nunca mais eu virei, risonha e louca/roubar o ninho ao sabiá choroso"... (Falavam assim, as moças de então!)
Agora vem agosto, nas asas dos sabiás suaves. E eu penso nos velhos cronistas que os descreveram e nos poetas que prestaram atenção ao seu canto: um Gonçalves Dias, um Bernardo Guimarães, um Casimiro de Abreu, um Fagundes Varela, um Castro Alves:... E é como se estivessem comigo, esses poetas, para ouvir, entre mangueiras e ipês, os "chorosos sabiás".